quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

A Sorveteria Bicota


Ela sempre esteve lá. Naquela praça. No centro da cidade. Num mundo onde "tudo que é sólido se desmancha no ar", é admirável que um negócio familiar tenha resistido aos tempos. Desde 1977 a sorveteria Bicota é uma referência na Praça Rui Barbosa, em Uberlândia, Minas Gerais.

Um fato quase inexplicável para mim, que vi a maioria dos estabelecimentos comerciais da cidade mudarem ou fecharem, é incrível que uma sorveteria tenha resistido às variações macroeconômicas e permanecido numa área tão nobre. A Bicota tanto experimentou os mirabolantes e inflacionários planos econômicos da década de 1980, quanto resistiu ao rápido crescimento de Uberlândia nos últimos anos. Sim, porque desenvolvimento econômico raramente é gentil com as pequenas empresas. No mesmo quarteirão, inclusive, chegaram "rivais do capitalismo mundial" como Mcdonalds e Yogoberry. 

"Mesmo com a chegada da concorrência, nós nunca perdemos clientes", garantiu Carmem Dora Brandão, a dona do estabelecimento. Junto com dois irmãos, ela toma conta do negócio há mais de 35 anos. Como sempre fui intrigado com as permanências da História, tive que interrompê-la no trabalho junto ao caixa da sorveteria para saber o segredo desse sucesso.

O produto 

Em poucos minutos de conversa, a resposta não poderia deixar de começar pelo óbvio: o sorvete! De fabricação própria, com ingredientes naturais e sem uso de corantes - assegurou a simpática dona. Para ela, a proposta de produzir de forma artesanal, ainda que isso diminua o lucro, é o diferencial da Bicota.

Além do produto de qualidade, evolução e controle são outras palavras-chave para explicar essa longevidade. "Com o tempo fui desenvolvendo novos sabores, aperfeiçoando os tradicionais. Também produzimos sorvetes específicos pra quem tem restrição de açúcar ou lactose", revelou Carmem, que tinha na ponta da língua (e do lápis) números importantes do caixa: "vendemos em média 4500 quilos por mês, sendo que no verão o movimento chega a ser 60% maior do que no inverno". O acompanhamento das receitas e despesas é feito de perto, e com essas informações eles equacionam as finanças da empresa, precavendo-se para os momentos de baixa.

O ponto

Satisfeito com a explanação do funcionamento do negócio, restava ainda uma dúvida sobre o imóvel onde funciona a sorveteria. Aliás, chamar o belíssimo sobrado – cujos traços neoclássicos nos remetem a seu passado centenário – de "imóvel", é quase uma ofensa. Mas eu precisava tratar de um último assunto econômico: especulação imobiliária. Pra começar, era próprio ou alugado?

"Alugado", respondeu Carmem. Ela afirmou que o valor do aluguel aumentou com o tempo, mas nada que impedisse de crescerem. Que nunca sofreu com a especulação e sempre teve boa relação com os donos. "A vontade deles de preservar o local também ajudou", concluiu.

Recentemente o sobrado passou por uma grande reforma. O trabalho idealizado pela arquiteta Débora Diniz não apenas preservou como ressaltou os aspectos históricos do prédio. Destaque para a fachada, agora melhor iluminada; e o esguio poste central – sim, poste! De ferro maciço, que ajuda a sustentar o piso superior e agora aparece por inteiro. (mais detalhes e fotos sobre o antes e depois da reforma, aqui ó!).

(Jornalisticamente, sei que deveria ter ido atrás dos proprietários para saber mais sobre a construção, sobre possíveis propostas de locação por empresas maiores, reajuste do aluguel ao longo do tempo, etc. Mas Carmem adiantou que eles estavam em luto, e nem me atenderiam. Eu também aceitei que no capitalismo ainda havia espaço para relações de negócio amigáveis, saudáveis e não exploratórias).

O prazer

Terminada a boa prosa mineira com Dona Carmem, pedi licença e fui tomar meu sorvete, como sempre faço quando estou de férias em Uberlândia. Escolhi meus sabores. Ignorei os condimentos extras. Pesei e paguei. Sentei-me à mesinha do lado de fora, protegido pelo guarda-sol e pela sombra de um grande cedro. Devagar fui tomando o sorvete e expiando o movimento apressado dos transeuntes. No meu ritmo, só um flamboyant, duas sibipirunas, um ficus, um Pau-Brasil, uma quaresmeira, e um jovem casal na mesa ao lado. Eles permaneceram por mais de hora e meia conversando, tranquilos, mesmo tendo acabado suas casquinhas.

Depois chegou um casal da “melhor idade”. Após uma improvisada pesquisa qualitativa de hábito de consumo, descobri a senhora Maria e o senhor José Rubens não moravam perto nem estavam de passagem. Descobri que eles enfrentaram o trânsito e a dificuldade de estacionar no concorrido centro da cidade especificamente para tomar sorvete na Bicota.

Se algum dia – caro leitor – estiver na minha cidade, faça o mesmo! Além do sorvete muito gostoso, poderá curtir um pouco do clima de interior em uma cidade que insiste em crescer. A Bicota, mais do que exemplo de empreendedorismo bem sucedido, é um patrimônio de Uberlândia.