Ela sempre esteve lá. Naquela praça. No centro da cidade. Num mundo onde "tudo que é sólido se desmancha no ar", é admirável que um negócio familiar tenha resistido aos tempos. Desde 1977 a sorveteria Bicota é uma referência na Praça Rui Barbosa, em Uberlândia, Minas Gerais.
Um fato quase inexplicável para mim, que vi
a maioria dos estabelecimentos comerciais da cidade mudarem ou fecharem, é incrível
que uma sorveteria tenha resistido às variações macroeconômicas e permanecido
numa área tão nobre. A Bicota tanto experimentou os mirabolantes e
inflacionários planos econômicos da década de 1980,
quanto resistiu ao rápido crescimento de Uberlândia nos últimos anos. Sim,
porque desenvolvimento econômico raramente é gentil com as pequenas empresas.
No mesmo quarteirão, inclusive, chegaram "rivais do capitalismo
mundial" como Mcdonalds e Yogoberry.
"Mesmo com a chegada da
concorrência, nós nunca perdemos clientes", garantiu Carmem Dora Brandão,
a dona do estabelecimento. Junto com dois irmãos, ela toma conta do negócio há
mais de 35 anos. Como sempre fui intrigado com as permanências da História,
tive que interrompê-la no trabalho junto ao caixa da sorveteria para saber o
segredo desse sucesso.
O produto
Em poucos minutos de conversa, a
resposta não poderia deixar de começar pelo óbvio: o sorvete! De fabricação
própria, com ingredientes naturais e sem uso de corantes - assegurou a simpática dona.
Para ela, a proposta de produzir de forma artesanal, ainda que isso diminua o
lucro, é o diferencial da Bicota.
Além do produto de qualidade,
evolução e controle são outras palavras-chave para explicar essa longevidade.
"Com o tempo fui desenvolvendo novos sabores, aperfeiçoando os
tradicionais. Também produzimos sorvetes específicos pra quem tem restrição de
açúcar ou lactose", revelou Carmem, que tinha na ponta da língua (e do
lápis) números importantes do caixa: "vendemos em média 4500 quilos por
mês, sendo que no verão o movimento chega a ser 60% maior do que no
inverno". O acompanhamento das receitas e despesas é feito de perto, e com
essas informações eles equacionam as finanças da empresa, precavendo-se para os
momentos de baixa.
O ponto
Satisfeito com a explanação do funcionamento
do negócio, restava ainda uma dúvida sobre o imóvel onde funciona a sorveteria.
Aliás, chamar o belíssimo sobrado – cujos traços neoclássicos nos remetem a seu
passado centenário – de "imóvel", é quase uma ofensa. Mas eu
precisava tratar de um último assunto econômico: especulação imobiliária. Pra
começar, era próprio ou alugado?
"Alugado", respondeu
Carmem. Ela afirmou que o valor do aluguel aumentou com o tempo, mas nada
que impedisse de crescerem. Que nunca sofreu com a especulação e sempre teve
boa relação com os donos. "A vontade deles de preservar o local também
ajudou", concluiu.
Recentemente o sobrado passou por
uma grande reforma. O trabalho idealizado pela arquiteta Débora Diniz não
apenas preservou como ressaltou os aspectos históricos do prédio. Destaque para
a fachada, agora melhor iluminada; e o esguio poste central – sim, poste! De
ferro maciço, que ajuda a sustentar o piso superior e agora aparece
por inteiro. (mais detalhes e fotos sobre o antes e depois da reforma, aqui ó!).
(Jornalisticamente, sei que deveria
ter ido atrás dos proprietários para saber mais sobre a construção, sobre
possíveis propostas de locação por empresas maiores, reajuste do aluguel ao longo do tempo,
etc. Mas Carmem adiantou que eles estavam em luto, e nem me atenderiam. Eu
também aceitei que no capitalismo ainda havia espaço para relações de negócio
amigáveis, saudáveis e não exploratórias).
O prazer
Terminada a boa prosa mineira com Dona
Carmem, pedi licença e fui tomar meu sorvete, como sempre faço quando estou de
férias em
Uberlândia. Escolhi meus sabores. Ignorei os condimentos
extras. Pesei e paguei. Sentei-me à mesinha do lado de fora, protegido pelo guarda-sol
e pela sombra de um grande cedro. Devagar fui tomando o sorvete e expiando o
movimento apressado dos transeuntes. No meu ritmo, só um flamboyant, duas sibipirunas, um ficus, um Pau-Brasil, uma quaresmeira, e um jovem casal na mesa ao lado. Eles
permaneceram por mais de hora e meia conversando, tranquilos, mesmo tendo
acabado suas casquinhas.
Depois chegou um casal da “melhor
idade”. Após uma improvisada pesquisa qualitativa de hábito de consumo,
descobri a senhora Maria e o senhor José Rubens não moravam perto nem estavam de passagem. Descobri que eles enfrentaram o
trânsito e a dificuldade de estacionar no concorrido centro da cidade especificamente
para tomar sorvete na Bicota.
Se algum dia – caro leitor – estiver
na minha cidade, faça o mesmo! Além do sorvete muito gostoso, poderá curtir um
pouco do clima de interior em uma cidade que insiste em crescer . A Bicota, mais do que exemplo de empreendedorismo bem sucedido, é um patrimônio de Uberlândia.
5 comentários:
Muito bom, jornalista. E mesmo que não tenha ido atrás de alguns contextos o texto segue bem redigido, dentro das técnicas, limpo, claro e bom de ler.
O lugar parece mesmo ser incrível. Esse ar interiorano que descreveu é apaixonante. Bom, pelo menos pra mim. :)
Pôxa, quando for pra SP de carro, vou passar em Uberlândia por causa da Bicota. Tem de ameixa? abs
Fera demais. Aliás, que sabores vc escolheu?
Abraço!
Só hoje vi seu post sobre a sorveteria Bicota e a citação sobre o trabalho que realizei por lá! Sou muito honrada por ter feito parte da história dessa sorveteria e ter tido oportunidade de conviver com pessoas tão maravilhosas como D. Carmem e sua família! Parabéns pelo texto!
Débora, obrigado pela visita. Procurei e encontrei seu blogue já que precisava mencionar e detalhar aspectos mais técnicos da arquitetura. Afinal, além do sabor do sorvete, o edifício é tão importante quanto na caracterização da sorveteria.
Aliás, PARABÉNS pelo trabalho realizado lá, que renovou sem deixar de preservar a História
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