Chego ao local de trabalho com as marcas de chuva dando
textura à camisa lisa e sem graça que estava usando, quando uma colega
pergunta: “Você esqueceu o guarda-chuva?”
Eu poderia responder simplesmente que sim, assumir um erro, deixar evidente que ocorrera um lapso de planejamento para dias tão chuvosos em Brasília. Mas a questão me fez pesquisar rapidamente toda minha experiência com tal objeto, e assim pude responder, categórico: “Não esqueci. Eu nunca tive guarda-chuva!”
Satisfeita a curiosidade da minha colega, fui atrás da minha, provocada por uma Marília Gabriela imaginária que indagou: “Pórr quÊ?” Por que diabos eu praticamente nunca fiz uso desse utensílio tão comumente
usado – com suas variações tecnológicas, desde os tempos mais remotos, pelas
mais diversas culturas? Nessa entrevista que se iniciou, percorri todo o
passado em busca das razões que pudessem explicar possível idiossincrasia.
S.B.: - Então Gabi... Não sei... [pensativo, enrolando o topete com os dedos]. Nunca fui milionário, mas
posso dizer também que não sofri na vida em termos de conforto, segurança, etc.
Quando criança, sempre fui carregado pra cima e pra baixo de carro pelos meus
parentes. No dia-a-dia, o máximo que ficava sujeito às intempéries eram os
poucos segundos e metros que separavam a porta do carro do portão da escola.
Talvez seja por aí, o começo de tudo.
S.B.: - Não!... Sou formado em História. Não me considero historiador porque não tenho a honra e o prazer de praticar essa arte, esse ofício.
M.G.: -Mas deve conhecer Karl Marx, que tinha uma interpretação da História baseada na questão material, econômica, não é?
S.B: - Conheço um bocado sim, grande Carlos Marques! [risos, solitário] É como chamo o velho barbudo. Mas tá certa. É por aí sim.
M.G.: - Então poderia dizer que essa sua condição material, esse fator sócio-econômico privilegiado, foi determinante na sua negação ao guarda-chuva?
S.B.: - Não necessariamente. Se eu tivesse respondendo isso ao Carlitos, talvez gostasse da explicação, mas nem ele se daria por satisfeito. Tudo que envolve o ser humano é complicado. Basta lembrar, inclusive, que na Mesopotâmia e Egito antigos o uso do então guarda-sol era restrito às pessoas do alto escalão, cuja distinção, por sua vez, era baseada em critério político ou religioso. Mesmo mais tarde, na era moderna européia, quando mais disseminado e tendo comprovada utilidade, o já portátil e pessoal guarda-chuva (trazido da China) sofreu com o preconceito de gênero: era considerado coisa de mulher, perpetuando uma tradição cultural greco-romana que abolia o uso, pelos homens, de artefatos para se proteger do clima. Enfim, cada caso, mesmo o mais simples, merece uma investigação cuidadosa e envolvente, abrangendo todos os possíveis e plausíveis fatores, espalhados pelo espaço e pelo tempo.
M.G.: - Falando em espaço e tempo, você viveu a infância e
adolescência em Uberlândia. Aos 17, foi morar em Brasília, que todos sabem, é
muito seca. Por acaso em Uberlândia não chove muito? Talvez seja essa a razão?
S.B.: - Não, não! Uberlândia não é uma Londres, mas chove sim,
e chove muito. Basta lembrar que a cidade só aparece nos telejornais nacionais
pra exibir os estragos das inundações. E Brasília não é seca o ano todo.
Inclusive, já ouvi de geógrafos que é proibido afirmar, tecnicamente, que o
clima de Brasília é seco. Não lembro agora, mas tem o adjetivo úmido ou
semi-úmido na definição oficial do nosso clima lá, então...
M.G.: ...não é pela geografia que iremos continuar...
(pausa)
S.B.: ...Mas foi bom você ter mencionado o tempo da adolescência, porque já foi uma época em que comecei a [faz sinal de aspas com as mãos] desmamar das caronas parentais. Comecei experimentando o ônibus, que era da linha particular do colégio, e passava pertin de casa. Depois passei pro coletivo, o público mesmo, aquele que te deixa longe do local desejado. Mas foi quando mudei de casa, e fui morar perto do centro, que virei bicho-solto:...virei pedestre
S.B.: Não.
M.G.: E o que fazia quando chovia?
S.B.: Daí eu tinha um bom motivo pra pedir carona [risos]. Ou pra deixar de ir ao inglês [risos X2].
M.G.: E como fazia com seus compromissos, com o colégio, o
inglês?
S.B.: [volta à
fisionomia séria. Olhando pra baixo, tenta relembrar...] Mas nem era isso
que acontecia na maioria das vezes. Sempre fui muito responsável. Quando chovia
eu sei lá,... deixava a chuva passar, esperava ela diminuir... corria no meio
dela, seguia seu ritmo, me molhava um pouco.
Ia me abrigando a cada teto encontrado pela rua,... As árvores. Me
molhava um pouco, não me importava.
M.G.: [conferindo suas anotações sobre a mesa] Humm... Eu vi aqui que você utilizou as palavras; os verbos, melhor dizendo: “deixar”, “esperar”, "seguir",“não se importar”. Posso afirmar então que você adota, assume uma postura passiva diante dos acontecimentos, das circunstâncias, quem sabe até, da vida?
S.B.: [desconcertado] Dito assim parece pejorativo. E não dá pra generalizar assim, extrapolar de um caso particular ao geral sem analisarmos mais situações. [quase bravo] Então eu não assumo isso não... [mais calmo]... Prefiro dizer que tenho uma atitude despretensiosa em relação a certas coisas, que sou despreocupado, tranqüilo. Isso eu assumo! Pô, e passividade não é necessariamente um atributo ruim. Passividade tem a ver com paz, e com receber. Duas coisas que podem ser consideradas boas, não?
Por exemplo, a própria vida. Eu não pedi pra nascer, não me
lembro de ter deliberadamente requisitado isso. No entanto ela me foi dada, e a
estou aproveitando. Também não nasci pra ir, não quis ir à escola, nem pedi pra
fazer inglês, espanhol, etc. Mas fui colocado nisso tudo e recebi conhecimento valioso das mais
diversas ciências, legado de tantos outros seres humanos, e ainda posso me comunicar
com mais pessoas hoje que não só as que falam português. Enfim...
M.G.: Você alguma vez já usou um guarda-chu...[interrompida]
M.G.: Você alguma vez já usou um guarda-chu...[interrompida]
S.B.: ...Cobram incessantemente que tenhamos atitude pra tudo, que
controlemos todas as circunstâncias, que resolvamos todos os problemas. Com a chuva é a mesma coisa. Não é que eu seja
passivo em relação ao problema da chuva. É que eu nem mesmo a considero um
problema.
Satisfeito, abandonei a entrevista, e comecei a trabalhar.
7 comentários:
Hilário, Sérgio! Um dos meus posts favoritos! Fica uma música para você então:
♫ "Can you hear me, that when it rains or shines,
it´s just a state of mind,
can you hear me?
Ra-a-a-in - I don´t mind..."
(Lennon & McCartney)♫
Curti. Muito leve e divertido. ^^
- Ei! Eu conheço esses olhinhos!...
- Dôtora Ester, obrigado pela recomendação musical. Vem a calhar! E olha que eles entendem de chuva muito mais do que a gente : )
Sérgio,
Muito bom. Pessoas ligadas ao interior do Brasil, principalmente ao mundo rural, não associam a chuva a "tempo ruim", como insistem em dizer os telejornais. Chuva é tempo bom. Que caia!
Abraço, Chico.
Seria o Sérgio um mineiro que não tem medo de chuva? De todas as formas, é polêmico.
Muito, mas muito bom.
Muito bom o texto, Serginho. Divertidíssimo!
Uma viagem boa pra rir... Você nos leva direitinho!
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